quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O DSM-V e a fabricação da loucura

O DSM-V e a fabricação da loucura De Fernando Freitas e Paulo Amarante*

Entre os dias 18 e 22 de maio, durante o congresso anual da Associação de Psiquiatria Americana (APA), foi oficialmente apresentada a nova edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM).

O DSM-V chega precedido por uma forte rejeição nos meios psi.  Por todos os cantos do mundo estão aparecendo petições, chamadas ao boicote, declarações, artigos  e livros publicados, assinados principalmente por especialistas, denunciando o Manual como uma obra "perigosa" para a saúde pública.

A questão de base é que o DSM-V, mais do que nas versões anteriores, fabrica doenças mentais; o que faz com que enormes contigentes populacionais  passem a ser considerados doentes e, como consequencia, a consumir medicamentos psiquiátricos.

É bem verdade que as versões anteriores também vieram a público provocando controvérsias. Publicado pela primeira vez em 1952, com uma lista de menos de 100 patologias (de inspiração freudiana, assim como a edição de 1968), a cada nova edição um número maior de categorias de doenças mentais aparece. A edição ainda em vigor, o DSM-IV, apresenta 297 patologias mentais. Através da versão preliminar disponível na Internet desde 2010, estima-se que o DSM-V tenha um número ainda maior de categorias de diagnóstico.

Esse aumento crescente das categorias de diagnóstico sugere haver uma tendência inexorável da psiquiatria para transformar comportamentos e experiências do cotidiano em patologias mentais, o que tem sido objeto de crítica a cada nova edição que aparece.

Nos Estados Unidos, onde o movimento contra o DSM começou, um dos críticos mais contundentes é o próprio Allen Frances, o psiquiatra que dirigiu a edição precedente. O prestigioso Instituto Americano de Saúde Mental (National Institute of Mental Health, NIMH) se negou a ver o nome da entidade associado ao DSM-V. Esse fato político é da maior relevância, na medida em que o NIMH é o maior patrocinador da pesquisa em saúde mental em escala mundial. "Os pacientes que sofrem de doenças mentais valem mais do que isso", justificou seu diretor, Thomas Insel, em um comunicado, explicando que o NIMH "reorientaria suas pesquisas fora das categorias do DSM", devido ao fato da sua fragilidade no plano científico.  

Na França, o combate vem se dando há pelo menos cinco anos, pelo coletivo Stop DSM , conforme noticiado pelo Le Monde em sua edição de 15 de maio último. Os profissionais que formam esse coletivo se insurgem contra o que eles chamam de "pensamento único" do Manual. Recomendamos a leitura do manifesto do movimento em sua versão em português.
Apesar da vultosa soma de dinheiro empregado para a elaboração do DSM-V, cerca de 25 milhões de dólares, o Manual parece deixar muito a desejar sobre o plano científico. Uma das principais críticas é que a sua lógica está mais do que nunca profundamente dominada pelos interesses da indústria dos psicofármacos. O conflito de interesses intelectuais parece estar hoje escancarado, conforme foi denunciado, por exemplo, por ninguém nada menos do que Allen Frances. 57 associações de saúde mental propuseram um exame independente, o  que foi  ignorado pelos formuladores do  DSM-V.

Novas patologias têm sido sugeridas, algumas bastante bizarras, como por exemplo, a "síndrome de risco psicótico".  A propósito, Allen Frances tornou pública a seguinte observação, feita após uma conversa com um colega: "Esse médico estava muito excitado com a idéia de integrar ao DSM-V uma nova entidade, a ‘síndrome de risco psicótico', visando a identificar precocemente transtornos psicóticos. O objetivo era nobre, ajudar os jovens a evitar o fardo de uma doença mental severa. Mas eu aprendi trabalhando nas três edições precedentes que o inferno está cheio de boas intenções. Eu não poderia permanecer em silêncio". Essa patologia parece ter sido retirada da versão final.

Mas há outras patologias que parece que virão, como "transtornos cognitivos menores".  O coletivo francês Stop DSM, prevê que a perda da memória fisiológica com a idade irá se tornar uma patologia em nome da prevenção da doença de Alzheimer. Podemos bem imaginar numerosas pessoas com a prescrição de testes inúteis e custosos, e com medicamentos cuja eficácia ainda não foi de fato validada e cujos efeitos a longo prazo são desconhecidos.

Outro exemplo é a patologização do luto, com a ampliação dos "transtornos de depressão".  Quer dizer, após duas semanas de luto, com a aparência deprimida do enlutado será possível diagnosticar episódios depressivos maiores e com isso a prescrição de antidepressivos.

Finalmente, mais um exemplo: "transtorno de desregulação pertubadora do humor".  O que  certamente  levará  a  que banais  cóleras  infantis sejam transformadas em  uma  patologia  mental.

Para  concluir, mais uma outra citação  de Allen  Frances:  "Quando nós  introduzimos no  DSM-IV a  síndrome  de  Asperger,   forma menos  severa  de  autismo,  nós  havíamos estimado que   isso  multiplicaria o  número de casos por três. De  fato,  eles  foram multiplicados por  quarenta,  principalmente porque  esse diagnóstico permite ter  acesso  a  serviços particulares  na escola  e fora  dela. Por  conseguinte,  ele  foi colocado  em crianças que não tinham todos  os critérios".

No Brasil, o 18 de maio é um dia que representa para nós o Dia Nacional de Luta Antimanicomial, expressão nacional de luta contra todas as formas de violência, exclusão, mercantilização e medicalização do sofrimento e da vida cotidiana. Nós nos solidarizamos às dezenas de entidades que estão se manifestando neste momento frente à sede do Congresso da APA, em San Francisco, Los Angeles, USA. São usuários dos serviços psiquiátricos que se consideram “Sobreviventes do Sistema Psiquiátrico”, são os profissionais de saúde mental e de pesquisa, reunidos contra o DSM-V e sob a palavra de ordem Occupy APA in San Francisco. Queremos aproveitar a ocasião para lançar aqui no Brasil o nosso movimento BASTA DSM.

*Professores e pesquisadores do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde mental e Atenção Psicossocial (LAPS;ENSP;Fiocruz) e Diretores Nacionais da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). Paulo Amarante é ainda Diretor do Cebes e da Revista Saúde em Debate.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Análise do comportamento e autismo



"Rituais autísticos" decorrem de sensibilidade alterada a estímulos ambientais, dificuldade de integração e ausência de repertórios

Em artigo publicado nesta seção, a presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Nilde Jacob Parada Franch ("Autismo e psicanálise", 13/9), referiu-se à abordagem da psicologia comportamental para o tratamento de autismo de forma simplista e equivocada.

No passado, o autismo foi visto como resultado de problemas emocionais e o tratamento recomendado era a genérica psicoterapia.

Com o avanço das neurociências, da genética e da própria psicologia, passou a ser compreendido como um problema de desenvolvimento. Referência mundial para a psiquiatria, o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) corrobora esse entendimento.

O foco das intervenções passou então a ser educacional, visando a desenvolver e aprimorar habilidades e repertórios necessários para o bem-estar e a inserção social do autista.

Foi nesse cenário que a tecnologia de ensino e de aprendizagem compreendida na ABA (análise comportamental aplicada) se sobressaiu e se tornou o tratamento privilegiado para pessoas com quadro do espectro autista. Isso se deve ao fato de a ABA historicamente ter se mostrado eficaz, e não pela propaganda de supostos benefícios.

Os "rituais autísticos" mencionados por Nilde Franch, convém esclarecer, podem ter, em alguns casos, função de esquiva social, conforme ela mencionou. Mas, na maioria das vezes, decorrem da sensibilidade alterada do autista a estímulos ambientais, dificuldade de integração sensorial e ausência ou deficit acentuado de repertórios comportamentais básicos, como expressão verbal e aspectos paralinguísticos (expressões faciais, entonação da fala...).

O estereótipo da psicologia comportamental como um método baseado em repetição e recompensa não passa de desconhecimento.

A análise do comportamento não é um método, mas uma abordagem científica que examina a interação do sujeito com o seu entorno. Sua tecnologia de intervenção é efetiva porque articula um referencial teórico-conceitual sólido e dados empíricos robustos. Os métodos são embasados em estudos --atendimento em consultório e acompanhamento terapêutico no ambiente em que o cliente vive possibilitam a identificação de suas necessidades e o seu desenvolvimento.

Basta consultar o banco de dados de periódicos como o "Jaba" (Jornal da Análise Comportamental Aplicada, na sigla em inglês) e os mais de 200 artigos sobre o autismo ali publicados para se conhecer os avanços científicos obtidos na área.

Uma intervenção comportamental bem planejada tem de incluir o desenvolvimento de linguagem funcional, ensino de habilidades sociais, organização de rotina e estabelecimento de metas acadêmicas.

Não é simplismo desenvolver pré-requisitos para se alcançar essas metas e para extinguir comportamentos autolesivos e estereotipados. Desses pré-requisitos dependem também o bem-estar do cliente e a possibilidade de um futuro com independência, produtividade acadêmica e equilíbrio emocional.

Autismo é um transtorno grave que, se não for cuidado adequada e precocemente, comprometerá aspectos básicos para a sobrevivência e qualidade de vida das pessoas diagnosticadas com o problema. Seu tratamento exige a participação de equipes interdisciplinares envolvendo psicólogos comportamentais especializados, médicos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais.

A preocupação com a eficácia do tratamento é legítima. Famílias, órgãos governamentais e a sociedade precisam estar cientes dos riscos que despender tempo e recursos com propostas sem eficácia comprovada cientificamente representam. Tratamento inadequado pode resultar em consequências devastadoras para o desenvolvimento social, acadêmico e afetivo do autista.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Coreógrafo com paralisia cerebral é destaque em mostra

"Nossa sociedade, por falta de conhecimento, trata o deficiente como um coitado. Se eu fosse me basear nesse tipo de pensamento, não colocaria meus pés para fora de casa. No meu espaço, não há sofrimento." 

A afirmação é do bailarino e coreógrafo paulistano Marcos Abranches, 36, que tem paralisia cerebral em decorrência do parto. Ele nasceu prematuro, aos 6 meses e 20 dias de gestação. 

Aos oito anos, começou a andar, depois de várias sessões de fisioterapia. Até hoje ele convive com incessantes espasmos, fala e caminha com dificuldade, mas tem o raciocínio perfeito -apesar do nome, a paralisia cerebral não afeta a parte cognitiva. 

Ele conta, antes de iniciar o ensaio aberto de seu mais novo espetáculo, só ter se sentido seguro para andar sozinho na rua aos 16 anos. 

"Corpo sobre Tela", trabalho criado em parceria com Rogério Ortiz e baseado na obra do pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992), é um dos destaques da Mostra Internacional de Arte + Sentidos, que vai até 27 de outubro no teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. 

Ao todo, serão 12 montagens de grupos do Brasil, de Portugal e da Escócia, encenadas por artistas com e sem deficiência. "O principal critério de escolha dos grupos foi a qualidade dos trabalhos", afirma Graziela Vieira, coordenadora da mostra.


Eduardo Knapp/Folhapress
O bailarino e coreógrafo Marcos Abranches durante apresentação 'Corpo Sobre Tela'
 
SINGULARIDADE
Em seu espetáculo, Abranches combina movimentos voluntários e involuntários a um potente trabalho de intérprete. Ele faz de seu corpo uma espécie de pincel e acaba por pintar com ele um quadro em cena. 

O artista não economiza energia ao tratar de temas como autonomia e singularidade. Hoje, considera-se 90% curado. "São mínimas as coisas para as quais preciso de ajuda: fazer a barba, amarrar o sapato e cortar a comida." 

Coisas que não limitam suas criações. 

"Tenho orgulho da minha deficiência, mas não uso isso em primeiro lugar na minha dança. Eu me entrego totalmente, mas antes de qualquer coisa vem meu coração e meu aprendizado", diz. 

Casado e pai de um filho de um ano, o artista afirma que dança pela família e para lutar pelo futuro de um país melhor, principalmente para as pessoas com deficiência. 

"Quero ser um exemplo de coragem para quem usa a própria deficiência em busca de piedade." 


TRAJETÓRIA
Abranches conta que não gostava de ficar em casa e arrumou emprego em um lava-rápido, aos 18 anos. 

Mas o que ele gostava mesmo de fazer era sair para assistir a espetáculos de dança, principalmente os do Balé da Cidade de São Paulo. 

Em uma noite de estreia, conheceu o coreógrafo Sandro Borelli e trocaram contatos. Em poucos dias, Borelli o convidou para acompanhar os ensaios de "Senhor dos Anjos" (2001).

Logo depois, Abranches fez um teste para participar do espetáculo. Passou e entrou para o elenco.

Iniciada a vida nos palcos, ele teve aulas e trabalhou com os coreógrafos Marta Soares, Marcelo Bucoff, Jorge Garcia e com o americano Alito Alessi, um dos fundadores do Dance Ability, escola de movimento que integra, em cena, pessoas com e sem deficiência. 

Abranches fundou o Grupo Vidança SP em 2005 e esteve em cartaz com "D...Equilíbrio", "Formas de Ver" e "Via sem Regra" (apresentado também na Alemanha, na Deutsche Oper Berlin). 

Além das experiências com diretores e coreógrafos brasileiros, ele trabalhou com criadores europeus, entre eles Gerda König e Christoph Schlingensief. 


Eduardo Knapp/Folhapress
Marcos Abranches ensaia 'Corpo Sobre Tela', coreografia baseada em obra do pintor Francis Bacon
Marcos Abranches ensaia 'Corpo Sobre Tela', coreografia baseada em obra do pintor Francis Bacon
 
MOSTRA INCLUSIVA
Outro destaque desta semana na + Sentidos é o espetáculo "Intento 3257,5", da companhia inCena, sobre novos padrões estéticos para o corpo com deficiência. 

A intérprete, Estela Lapponi, 40, foi vítima de um derrame aos 24 e tem a parte esquerda do corpo paralisada. 

"Minha vontade de trabalhar era maior do que qualquer status quo da profissão", conta ela, que já era bailarina antes do acidente. 

"Hoje aceito 100% esse corpo que tenho. Nem penso mais nisso, as pessoas é que me lembram o tempo todo", afirma a bailarina. 

Na última semana do evento estão concentrados três trabalhos de artistas da Escócia, na mostra paralela Unlimited, realizada em parceria com o British Council: "Se Estes Espasmos Pudessem Falar", "Caracóis & Ketchup" & "Mobile/Evolution". 

"Ainda existe preconceito, mas a ideia não é fazer assistencialismo, muito menos chocar as pessoas. A ideia é revelar a arte desses criadores, que evolui cada dia mais", diz Graziela Vieira.